Para os meus avós Guiomar, Paulo, Grace, Jose, Edyl e Gladys. O Dia dos Avós foi 26 de julho, mas, como inspiração e certas experiências não têm data marcada, fica a homenagem tardia, direto do meu coração para suas almas.
Hoje não vou contar a rica história do bairro Harlem, em Nova York, mas vou compartilhar a minha experiência na minha mais nova vizinhança predileta em Manhattan. Demorei muito tempo para conhecer a região como deveria, mas a vida me trouxe até aqui e me surpreendendo com a possibilidade de ali reviver momentos doces da minha infância, na casa de ambas avós, no bairro de Bonsucesso, no Rio de Janeiro.
Mais de 35 anos separam os meus domingos no subúrbio carioca deste domingo no bairro localizado ao norte do Central Park mas, como nas palavras de Clarice Lispector, “não é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria…”.
Saí do prédio, no lado oeste, uma área residencial da vizinhança, onde estou mais próxima do bairro do Bronx do que do Times Square. Atravessei a rua e sentei no banco da pracinha, onde as crianças tomavam banho no chafariz, que elas mesmas acionam quando querem brincar, para não desperdiçar água, ele fica desligado até alguém animado querer se refrescar. Observando a cena, me veio à tona a memória dos meus banhos de mangueira no quintal da casa da minha avó. Tanto em Bonsucesso como no Harlem, a temperatura é alta no verão, assim como o índice de umidade, não tem piscina nem praia na redondeza, mas a criatividade transforma o recurso disponível na mais divertida das brincadeiras. Minha lembrança foi tão real que parecia mais que eu estava segurando uma antiga fotografia do que assistindo a cena.
Energizada pela alegria das crianças, decidi enfrentar o calor e caminhar calmamente pelas ruas do bairro. Perdi a conta de quantas pessoas me cumprimentaram em apenas quatro quarteirões. No Harlem, assim como na Praça das Nações, nos anos 80, todo mundo faz questão de olhar nos seus olhos e dizer olá e saber como você está.
Passei por um grupo de vizinhos sentados em suas cadeiras de praia na calçada, eles riam deles mesmos dizendo que estava muito calor para ficar em casa. Quando eu era pequena, a casa das minhas avós já tinha ar-condicionado em apenas 1 cômodo, um luxo que chegou muitos anos depois da infância dos meus pais, que também tinham que ir pra rua buscar refresco.
Cheguei no supermercado e a camaradagem e o bom humor dos presentes me levou direto à lanchonete onde, aos 10 anos de idade, eu ia comprar refrigerante pro almoço de domingo. Ela ficava na mesma calçada da casa da minha avó, e seus frequentadores possivelmente estavam longe de ter uma vida perfeita ou glamourosa, mas o alto astral das suas vozes deixou uma marca na minha alma infantil. O mesmo tom das vozes que ouvi naquela tarde no Harlem enquanto eu comprava ingredientes para preparar o meu almoço de domingo. A simplicidade e a gentileza do pessoal que lotava a lanchonete era a mesma do empacotador, da caixa e do rapaz que segurou a porta pra mim no supermercado. Todos com atitudes singelas e sinceras.
De volta ao prédio, um senhor se apresenta. Vizinho do quinto andar, lado esquerdo, se oferece para carregar as minhas sacolas de compra. Agradeci, mas estavam leves, não precisava mesmo. Subi, cozinhei ao som de música brasileira e Aretha Franklin, feliz como uma criança, saí novamente. Nessas alturas, minha sensação era que o bairro já tinha virado o quintal da casa da avó, onde eu sabia que tudo podia, e que eu deveria aproveitar porque o domingo ia terminar e a brincadeira tinha que acabar.
Foi quando decidi visitar a loja de produtos naturais, recém-inaugurada na esquina de casa, entrei e me deparei com dois senhores jogando xadrez e conversa fora. Outra lembrança tão real, do meu avô, que adorava uma jogatina e um bom papo. Ele era tão popular em Bonsucesso quanto a cidade que dava nome a avenida que cortava a praça que frequentava: Nova York.
Fiquei horas na pequena loja, tomei suco, experimentei as sobremesas, conversei com o dono, e com muitos dos simpáticos frequentadores. Mas foi em um momento de silêncio que percebi que foi em Bonsucesso que eu vi pela primeira vez uma placa com o nome da cidade onde eu iria um dia realizar os maiores sonhos da minha vida: Nova York.
Ja era noitinha quando saí do meu porto seguro de delícias naturebas e continuei minha caminhada pela região. Os muros do Harlem contam a história da redondeza, assim como as minhas lembranças, naquele domingo, estavam recontando para mim a minha própria história.
Me sentindo já como parte da turma, eu já estava falando com todo mundo na rua, com a mesma desenvoltura que, quando criança, eu também cumprimentava e conversava com quem cruzasse meu caminho na Praça das Nações.
Dizem que Bonsucesso não é mais o mesmo lugar. Também, meus avós não vivem mais lá. Todos estão em paz num plano superior. Já há alguns anos, longe dos olhos, mas eles estiveram mais presentes que nunca em cada cena que vi, em cada vizinho com quem cruzei, em cada sorriso que recebi, no meu domingo no Harlem. Fui dormir com a mesma sensação de felicidade que ia pra cama na infância, tive bons sonhos, revigorada, acordei pensando em Clarice. Ela tinha razão, “eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria…”.