Sou fã de carteirinha de documentários e, mais ainda, dos cineastas, muitos deles jornalistas, que, em diversas ocasiões, arriscam suas próprias vidas e se dedicam a projetos por anos, sem remuneração, para nos mostrar uma realidade, próxima ou distante dos nossos olhos, que não enxergamos ou não temos oportunidade de vivenciar.
Por isso, os eventos promovidos pela IDA (International Documentary Association) são tão especiais. Eles nos permitem assistir documentários sobre os mais diversos temas, produzidos e dirigidos por brilhantes profissionais, como o vencedor do Oscar, Roger Ross Williams, que trouxe para a tela o best-seller do Dr. Ibram X. Kendi, “Stamped from the Beginning”. Publicado em 2016, o vencedor do National Book Award, narra toda a história das ideias racistas e seu poder impressionante ao longo da história estadunidense.
A adaptação documental de Williams utiliza um processo de animação inovador que combina ação ao vivo com a arte da época, para iluminar figuras e momentos históricos e contemporâneos, conhecidos e obscuros. Principais acadêmicas e ativistas, como Dra. Angela Davis, Honorée Fanonne Jeffers, Brittany Packnett Cunningham, Dra. Jennifer L. Morgan e o Dr. Kendi guiam os espectadores através de um relato contundente de como imagens racistas foram desenvolvidas e consagradas na cultura estadunidense.
“Stamped from the Beginning” foi um dos melhores docs que assisti nos últimos tempos. Não só me lembrou importantes fatos históricos, como o início do tráfico de escravos liderado por Portugal (nossos colonizadores, o que explica muito o caos que o Brasil vive hoje, tendo mais de 58% da população preta ou parda e, infelizmente, com o título de um dos países mais racistas do mundo), como expôs líderes que inspiraram e outros decepcionaram. Mas a decepção faz parte do aprendizado. Sair da bolha dói porque enxergamos a realidade como ela é e não como a gente gostaria que ela fosse e isso é ótimo. Faz parte do amadurecimento.
Falando em amadurecer, uma parte do documentário que me chamou atenção foi o trecho de um discurso de Malcom X: “quem te ensinou a odiar o formato do seu nariz e o formato dos seus lábios?”. Hoje em dia a gente vê tantas mulheres, pretas, latinas, muçulmanas, fazendo procedimentos cirúrgicos para mudarem o formato do seu nariz e sua boca. Eu sempre questiono o porquê. Uma feminista me disse uma vez que eu não deveria criticar uma mulher por fazer cirurgia plástica. Eu não critico, apenas questiono a motivação. Porque o padrão de beleza que essas mulheres belíssimas tentam seguir é da mulher branca e aí está a minha dúvida, você faz por que ama ou faz para pertencer a etnia dominante? Acho que foi isso que Malcom X quis dizer, e que está evidente nesse fascinante documentário.
“Stamped from the Beginning” não só inovou trazendo os recursos da animação para o formato tradicional de um documentário, como convidou um grupo de mulheres pretas para discutir o tema, uma escolha consciente de Roger, que compartilhou alguns detalhes sobre o processo no papo com Carla Renata, presidente da organização Critics Choice Association, que rolou depois da sessão no histórico The Culver City Theater, em LA. Seguem os destaques das colocações de Roger na conversa, tão sensacional como o doc.
“Geralmente em documentários, a gente sempre vê um grupo de homens dando depoimentos sobre racismo e outros temas. Eu pensei, por que não convidar um grupo de mulheres que são sumidade no tema, historiadoras, autoras, pesquisadoras, doutoras, todas formadas nas universidades de maior prestígio do país? Todas pretas. Mais que o depoimento delas, elas são um exemplo para as mulheres pretas de opinião e conquista.”
“Foi importante pra gente colocar trechos de entrevistas não tão conhecidas de pessoas como Malcom X, Dr. King, relembrar discursos deles que não são os mais populares. E sim, também colocamos falas do Obama e de Hillary Clinton que eu tenho certeza que, hoje, eles não têm orgulho de terem dito, mas é uma forma de mostrarmos a evolução da discussão sobre o racismo. Hoje, eles não falariam da mesma maneira.”
“A frase do Trump dizendo que ele fez mais pela população preta nos EUA do que Abraham Lincoln foi importante porque a gente também mostrou as imperfeições tanto de Lincoln como de Thomas Jefferson, um dos fundadores do país, que era, na verdade, um escravocrata. Então foi uma ilustração histórica importante pra apresentar as “verdades” de Trump.”
Roger é querido, além de ser um dos melhores cineastas de sua geração. O papo com Carla foi uma delícia, assim como o coquetel que celebrou o documentário.
Eu saí inspirada e menos ignorante do que entrei. Ainda tenho muito, mas muito a aprender, e seguirei acompanhando os documentários que são uma fonte importante no meu processo. Obrigada, IDA, pelo convite e pelo trabalho magnífico que realizam dando voz e oportunidade para cineastas e fãs de docs, não só nos EUA, mas pelo mundo afora. Lindo trabalho de todos!