Ao chegar no Festival de Cinema de Santa Barbara, onde foi homenageada no início do mês, a atriz Saiorse Ronan, indicada ao Oscar este ano por sua atuação em “Lady Bird- A Hora de Voar”, dispensou o tapete vermelho e as entrevistas com a imprensa e foi direto falar com os fãs. Atendeu cada um dos que lhe esperavam fora do belo teatro da cidade. Sentada na plateia assisti em um telão Saiorse tirar fotos, distribuir autógrafos, abraços e sinceros sorrisos. No final das contas, Saiorse acabou não tendo tempo de falar com os jornalistas, mas subiu ao palco pra receber o seu troféu depois de ter dado plena atenção aos seus fãs.
Algumas semanas depois, encontrei Greta Gerwig, também indicada ao Oscar pelo roteiro e direção de “Lady Bird” em um evento em LA. Ela estava conversando com fãs quando seu assessor de imprensa disse que o tempo deles estava acabando e ela teria que partir. Um grupo de pessoas ainda a aguardava, inclusive eu e minha amiga Mari. Educadamente, com toda a tranquilidade, Greta respondeu ao assessor que iria terminar de falar com todas as pessoas que já estavam na roda e depois partiria. Sem pressa, ela continuou o bate-papo com seus admiradores.
Greta Gerwig escreveu o roteiro do filme, mas como já disse em várias entrevistas, “Lady Bird” nasceu mesmo quando num quarto de hotel em Toronto, Saiorse leu todas as falas da personagem principal: “Lady Bird foi criada por mim e pela Saiorse. Somos muito diferentes dela, mas ela tem um pouco de nós duas”.
É interessante ouvir Greta falar como “Lady Bird” ganhou vida, pois por mais improvável que fosse imaginar o sucesso que este pequeno filme independente, inspirado em algumas passagens da vida de Greta, faria, hoje, quando penso sobre ele, vejo também o tanto de coisa que Saiorse e Greta têm em comum, não me surpreende que as duas tenham ficado muito amigas e, ao ver a forma com que ambas tratam os fãs e as pessoas que as cercam, fica ainda mais óbvia as razões que levaram este filme despretensioso ser um dos indicados ao Oscar na categoria melhor filme em 2018.
Para quem não sabe ainda, “Lady Bird” acompanha a trajetória de Christine McPherson (Saoirse Ronan) que está no último ano do ensino médio, em 2002, e o que mais deseja é ir fazer faculdade longe de Sacramento, capital da Califórnia e sua cidade natal, ideia firmemente rejeitada por sua mãe (Laurie Metcalf). Lady Bird, como a garota de forte personalidade exige ser chamada, não se dá por vencida e leva o plano de ir embora adiante mesmo assim. Enquanto sua hora não chega, no entanto, ela se divide entre as obrigações estudantis no colégio católico, o primeiro namoro, típicos rituais de passagem para a vida adulta e inúmeros desentendimentos com sua mãe.
A primeira vez que assisti “Lady Bird” foi no New York Film, em outubro de 2017. Engraçado que a primeira coisa que pensei quando o filme acabou foi que Greta Gerwig tinha escrito a história da minha vida. Aliás, parecia que ela morava na Tijuca, em 1990, quando eu estava no último ano do ensino médio. O que é impossível pois na época Greta tinha apenas 7 anos de idade e, como Lady Bird, crescia em Sacramento.
Mas eu jurava que de certa forma Greta estava escondida ouvindo as minhas conversas na hora do recreio no Colégio Marista São José, escola católica onde eu estudava. Como Christine McPherson, morava do outro lado da linha de trem, eu morava do outro lado do túnel Rebouças, longe da praia, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Eu também dobrava a minha saia na escola (pra ficar mais curta), o que, como no filme, era motivo de advertência. Isso, sem contar que, como a personagem e sua melhor amiga, eu e minha BFF passeávamos pelas ruas bonitas da minha vizinhança, admirávamos os prédios e imaginávamos como seria morar por ali.
Na primeira cena do trailer, a gente vê Lady Bird discutindo com a mãe e se jogando para fora do carro em movimento. Eu nunca tive coragem pra tomar uma atitude tão radical, mas sim discuti muito com a minha mãe e sempre disse que eu queria morar nos EUA, tanto que visitei tantas vezes o país, ainda naquela época, que me orgulhava de conhecer tão bem Nova York como conheço o Rio.
Alguns críticos e pessoas que conheço detestaram o filme, disseram que “Lady Bird” trata da realidade de uma menina privilegiada de classe média, com problemas banais e destacam um comentário racista que a personagem fez em uma das cenas com o irmão (vou poupar os detalhes para não dar spoilers). E a minha resposta pra essa galera é, desculpem-me se vocês foram adolescentes perfeitos, bem resolvidos, conscientes de cada atitude e cada palavra, mas eu era bem parecida e em alguns aspectos ate mais crítica que Christine McPherson quando era da sua idade.
Aliás, como Christine eu também me dava um codinome, que mantenho em segredo até hoje, e não é com orgulho que admito mas magoei a minha melhor amiga na época, pois optei por dar atenção aos conhecidos mais populares da escola e, sim, também a troquei pra ficar mais próxima do garoto que eu estava a fim.
As coincidências entre a minha jornada e a trajetória de Lady Bird não param por aí, também tive namorado que descobri que era gay e perdi a virgindade em uma situação engraçada e mais prática do que romântica. Meu dia de partir de casa também chegou e, como Lady Bird, quando me deparei com a nova realidade, comecei a dar valor a tudo que minha mãe me disse na adolescência. Hoje só agradeço a ela tudo por tudo que me ensinou, pelas broncas que me deu, e até o fato dela não ter me deixado ir embora antes da hora.
E quanto à Tijuca, quanto mais longe moro, e mais tempo fico sem ir ao Brasil, mais valorizo o lado do túnel onde cresci, e embora minha família não more mais lá, no fundo do coração, a Tijuca foi e será para sempre a minha casa.
Se Christine McPherson foi uma adolescente na telona que desagradou alguns, como Marcelo Janot que em sua crítica para o portal G1 disse que o filme é velho e cheio de clichês, para a maioria dos críticos e do público, “Lady Bird” foi uma recordação saudosa da sua própria juventude, como eu, muitos se identificaram com os “clichês” da vida de Chirstine.
Por sinal, a própria Greta Gerwig disse inúmeras vezes que não pretendeu fazer nada novo ou diferente ao contar essa história, pelo contrário, ela queria celebrar a sua cidade, Sacramento, e a relação de mães e filhas. Inclusive a própria cineasta citou vários filmes que lhe serviram de inspiração, o objetivo de “Lady Bird” foi ser um filme simples, genuíno, sobre a vida de pessoas comuns, com problemas comuns e absolutamente realistas. Talvez o Janot não tenha percebido as camadas profundas daquela história, mas Christine McPherson queria ser muitas coisas, menos unânime, e ainda bem que ela conseguiu desagradar alguns, o que eu particularmente admiro.
Da química entre Greta Gerwig e Saiorse Ronan nasceu uma personagem que recontou com espinhas no rosto (a pedido de Greta, Saiorse não usou maquiagem no seu rosto) a história da minha vida. Já assisti “Lady Bird” muitas, mas muitas vezes, e ainda custo acreditar que Greta Gerwig nunca esteve no pátio do Marista São José ou no Shopping 45 na Tijuca ou no nosso apartamento na Rua Professor Gabizo, presenciando uma das minhas discussões com a minha mãe. Ainda mais que numa das cenas do filme, Lady Bird menciona que o único lugar que esteve fora dos EUA foi o Brasil, pois seu pai trabalhou um tempo lá quando ela era criança. No meu encontro com Greta em LA, perguntei se ela já tinha visitado nosso país, ela disse que não, que ela deu algumas opções de países que ela gostaria que Saiorse usasse na cena, dentre eles o Brasil, e ela me contou que foi a Saiorse que escolheu o Brasil.
Depois dessa conversa com Gerwig eu descobri o mistério, não era ela e nem Saiorse que estiveram no recreio do meu colégio e roubaram o meu diário com as minhas memórias adolescentes, mas quem esteve lá foi a própria Lady Bird, que representa o lado rebelde dessas duas doces mulheres e é quase um espelho da minha alma adolescente, por vezes sensível, outras divertida, muitas vezes perversa, e sempre autêntica e sincera.