Ontem apresentamos a cineasta brasileira Camila Rizzo, que escreveu, produziu e dirigiu seu curta-metragem “Headway” que está conquistando os festivais em Hollywood e pelos EUA afora.
“Headway” mostra como a vida de um garoto autista se transforma quando seu tio, irmão de sua mãe, lutador de jiu jitsu forçado a se aposentar, vai passar uma temporada em sua casa e o ensina a lutar. O filme não é baseado em uma história real, mas em personagens reais.
Vida Real – Igor
Camila: Igor foi diagnosticado, se eu não me engano, aos sete anos de idade. Demorou. O médico falou para a mãe dele que ele não conseguiria ler e escrever. Então, ela abriu mão de tudo: saiu da faculdade e ensinou o Igor a ler e escrever. Ela começou a entender como ele funcionava, que era através da repetição, e aí ela começou a sentar com ele e insistiu. Hoje em dia, ele se formou na escola e quer fazer Educação Física. Hoje, ele tem 22, mas ele começou o jiu jitsu com 16. O que muito me tocou foi a mãe dele dizer que ela não podia abraçar e beijar o filho, e que o jiu jitsu tinha aberto essa porta para ela. Através do jiu jitsu, ele conseguiu superar as questões do toque e, hoje em dia, ela abraça, beija e ele às vezes até fica: “Chega!”.
Ben No filme
Camila: No filme, eu conto um pouco mais cedo: ele tem uns 11 anos. Mas, na história real, ele começou com 16 anos. Ou seja, foram 16 anos de vida em que a mãe não beijava, não abraçava, não olhava o filho nos olhos.
A Natália, especialista em autismo, falou uma coisa muito legal… Eu comecei a ter que determinar quais seriam os sintomas do Ben, do meu personagem. Eu não queria que fosse um autismo moderado ou severo porque é um curta-metragem, não é?
Claudia: É, não ia dar tempo de você desenvolver.
Não ia dar tempo de fazer uma evolução muito rápida porque ia ser uma coisa muito fantasiosa. Então, é um autista leve e ele melhora os sintomas. Eu peguei três sintomas que ele melhorou: a interação social, a questão do toque e o olho no olho – que tem a ver com a interação social. Aí, eu comecei as crises dele, que a gente ensaiou, a gente conversou… Ela participou de tudo, desde o casting. Tudo eu filmei e mandei para ela. A gente fez os ensaios das cenas, eu mandei para ela. Ela dava o olhar dela, não só em relação a ele, mas também em relação às pessoas que estavam reagindo a ele. Ela sabe como é que é, como a mãe de um autista é.
Claudia: E como o tio já era diferente da mãe, não é?
Camila: Exatamente, uma pessoa totalmente outsider. Então, assim, ela falava: “Olha, ele está fazendo uma atuação muito triste. O autista não é triste, ele é prático. Ele não é triste, ele é seco”. Então, desde o tom que deveria usar, tudo ela me ajudou.
Claudia: Foi incrível você ter tido essa pessoa, não é?
Camila: É, que analisou tudo comigo à longa distância – porque ela está no Brasil e eu estou aqui.
Claudia: Antes, durante e depois. Ela viu o primeiro corte?
Camila: Hoje mesmo eu mandei para ela uma pergunta, porque eu estou querendo encaixar um negócio no filme, uma frase. Então, ela foi brilhante nesse ponto.
Vida Real – Pedro Rizzo
Claudia: Fala um pouquinho da trajetória do seu irmão.
Camila: O meu irmão foi campeão mundial duas vezes. Ele foi lutador do WVC… Mundial de MMA e, depois, ele entrou para o UFC. No UFC, ele fez uma carreira muito boa. Chegou a disputar o título três vezes e acabou não vencendo, mas ele venceu seis campeões mundiais, seis pesos-pesados do UFC. O Pedro começou judô com três anos de idade e depois foi para a capoeira, quando ele conheceu um rapaz que lhe apresentou para um professor de muay thai. Aí, o Pedro começou… Minha mãe dava o dinheiro do lanche para ele – que ele estudava no Princesa Isabel e o muay thai era no Leme. Aí, ele começou a não comer na escola e guardar o dinheiro do lanche para pegar o ônibus e ir para o muay thai depois. E dizia que estava indo para a capoeira.
Claudia: Então, ele tinha uma atividade, só que ele mudou a atividade por conta própria e resolveu não compartilhar.
Camila: Ele tinha 15, 16 anos e ele fez por conta própria. Até que um dia ele chegou com a cara amassada em casa, com o olho roxo e um troféu de campeão carioca em muay thai. Foi quando meus pais descobriram que, na verdade, ele estava fazendo muay thai e a casa caiu! “Você está maluco, vai fazer isso, vai se machucar…”.
Claudia: Aí já era tarde!
Aí já estava fazendo. Já estava apaixonado por aquilo, pela luta. Aí meu pai falava: “Meu filho, para ser lutador, um é bom em um milhão. Você é esse um em um milhão?”.
Claudia: Ele é determinado, não é?
Camila: Ele é. Aí, ele falou: “Pai, entende uma coisa: se eu morrer no ringue, eu morro feliz”.
A PESQUISA:
Camila: Eu tive uma conversa com uma especialista em autismo americana que não acreditava na história da Marleide (mãe do Igor). Ela falava: “Olha, eu sou mãe e isso que você está contando está me parecendo um pouco fantasioso. Não porque ela esteja inventando essa história, mas porque mãe é mãe. Então, acaba exagerando porque é muito entusiasmada e tal”. Eu já tinha caminhado, já tinha começado a ver locação e estava com a equipe, com a Bruna, que me ajudou a escrever também. Então, ela falou: “Não, Cami, calma… Vamos ouvir uma segunda opinião, vamos falar com outras pessoas”. Isso me deu uma paulada, porque eu falei: “É uma especialista em autismo dizendo que isso não existe. Mas, se aconteceu com ela, não é possível. A evolução está aí, a gente viu. No Jornal Hoje, eles falam que o autismo dele passou de moderado a leve. Hoje em dia, ele tem um autismo leve. Eu vi uma especialista falando. Não é possível”. Aí, a Bruna falou: “Vai ouvir outra opinião”. Tem uma amicíssima minha que é especialista em autismo e ela falou: “Esquece o que essa mulher falou. Vou te explicar por que, cientificamente, funcionou”. E ela me deu uma aula de autismo. Ela me explicou a questão do foco, por exemplo. A pessoa autista não olha nos olhos porque o cérebro dela está ocupado, recebendo um monte de estímulos. Nós, que não temos o brain disorder, conseguimos diminuir o barulho do carro lá fora, da luz que está entrando aqui…
Claudia: A gente está ouvindo, mas não está…
Camila: A gente consegue bloquear isso para focar no que a gente quer, e eles não têm isso. E como o esporte… Inclusive, eu lembro que, quando eles foram à Fatima, a gente estava com um médico lá que fala neurologicamente o que o esporte… Existe ainda uma questão biológica mesmo. Eu não me lembro exatamente qual é, não sei se é uma proteína ou alguma coisa, enzima, que o corpo libera através do esporte e que ajuda também. Então, é físico. E ela me explicou, me contou várias histórias e me fez entender bem como funciona o autismo. Quando ele conseguiu aprender a focar, a primeira pessoa que ele olhou nos olhos foi o professor de jiu jitsu dele, porque é o cara que estava dando para ele tudo o que ele queria. Rolar no chão, para o autista, é muito bom, é agradável. Então, ele gostava de ir para rolar no tatame, para conhecer gente. Ele chegava e se apresentava para as pessoas: “Oi, o meu nome é Igor e eu sou autista”. Ele falava isso para todo mundo e, então, ele começou a fazer amigos e aquilo virou… E a especialista em autismo, a outra, começou a me falar como se ele estivesse sendo obrigado a fazer essas coisas: “Será que ele gostava mesmo de ir?”. Mas, depois que eu conversei com a Natália e que ela me explicou cientificamente que é possível, eu comecei a correr atrás de um instrutor de jiu jitsu com experiência em autismo. Aí, eu coloquei no Facebook – que eu falo que é um ninho, vamos cutucar o ninho dos brasileiros que vai sair de tudo lá. A quantidade de gente que entrou em contato comigo… Teve um cara do Japão que entrou em contato. O filho dele é autista e tem 11 anos, o Enzo. Ele foi o primeiro autista a participar do pan-americano de jiu jitsu aqui nos Estados Unidos e ele participou do mundial em Abu Dhabi no ano passado. Ele tem um livro chamado Autismo + Jiu Jitsu = Potencial e eu conversei muito com ele.
Claudia: Então, você fez muita pesquisa, com pessoas mesmo, entrevistas e médicos…
Camila: Muita. Conversei com três especialistas diferentes: conversei com essa moça, conversei com essa minha amiga e tem um americano que trabalha com autismo há oito anos. Ele é faixa marrom de jiu jitsu também, que o pessoal da academia onde a gente conseguiu fazer os ensaios me apresentou. Inclusive, ele chegou a assistir um dos ensaios para poder dar umas dicas para o Hayden, que é o ator que fez o Ben. Então, eu fiz… Com o meu background de jornalismo, para mim, pesquisa é tudo. Eu não queria fazer uma história fantasiosa. Eu queria fazer uma história crível, onde as pessoas pudessem olhar aquilo, desde o cara que trabalha com jiu jitsu ao especialista em autismo, à pessoa que tenha qualquer experiência com autismo na família, ao total leigo. Então, o cara que é professor de jiu jitsu, ele vai ver que eu estou fazendo golpes passo a passo com o Hayden, o que vai fazer com que ele faça o golpe seguinte. O especialista em autismo vai olhar e entender que ele só fez aquele golpe porque ele passou por essas outras coisas. O cara que é autista ou que tem essa experiência vai vendo essa evolução no arco dramático da história, e o leigo vai aprender um pouco sobre esse universo – que muita gente não conhece. Então, eu quis realmente fazer isso bem crível.
Claudia: E você assistiu filmes, viu séries também que falam sobre isso?
Camila: Sim. Eu li artigos, vi vídeos. Eu pesquisei muito a Autism Speak, que é uma das maiores organizações que tem aqui nos Estados Unidos. Vi vários artigos deles, vídeos que eles fizeram de pontos de vista do autista. Cheguei a entrar em contato com algumas – porque eles estão em muitos Estados, tem inclusive no Canadá. Vi as séries “Atypical”, “Good Doctor”, assisti “Rain Man” de novo. Assisti um filme maravilhoso da Claire Danes, “Temple Grandin”.
Claudia: Quanto tempo de preparação? Porque foi longa a sua.
Camila: Eu abri mão da minha vida por seis meses.
A PRODUÇÃO:
Camila: A Bruna, produtora, me ajudou também no roteiro e locação. A Ligia, que também produziu, correu atrás de baratear tudo o que era possível. O SAG (Sindicato dos Atores nos EUA), foi ela que negociou tudo, a questão do stunt (dublê) e tudo.
Claudia: E por que você colocou o filme no SAG (Sindicato dos atores nos EUA)?
Camila: Porque a atriz que eu escolhi era SAG. Eu tinha 13 atrizes e ela era a única SAG, que eu não sabia. Aí eu olhei e falei: “Cara, eu adorei a Kelly. Quero a Kelly”. A Kelly é SAG, então, vamos transformar em SAG. Só que eu não sabia das implicações.
Claudia: Então, você escreveu o roteiro, dirigiu e produziu?
Camila: E produzi. E ela editou – a Juliana, que é a editora final de Deus Salve o Rei, que é a novela da Globo. Ela é da Globo, editou Ligações Perigosas…
Claudia: Que bacana! Ela editou no Brasil?
Camila: Ela editou no Brasil, eu mandei para ela porque estava com o tempo apertado. Na verdade, foi o marido de uma amiga minha, que eu pedi para levar o HD. Eu fui ver o FedEx e era 500 dólares para mandar! É pesado, é um HD de quatro teras.
É. É uma família. Eu preciso criar uma química entre os três e eu vou ter uma relação crescendo ali. E eu tenho uma criança… Na verdade, adolescente, que o Hayden tem 14 anos. O Hayden, eu achei muito legal, porque ele já estava trocando mensagens com o Connor. Eles viraram amigos. Quando o Hayden estava tendo dificuldades no set, o Connor estava ali como o “tiozão”, ajudando ele. Tiveram takes que eu peguei dos dois juntos sem eles saberem que estavam sendo filmados. A gente tinha um código, que é o fifty fifty. Aí, eu falava fifty fifty e começava a rodar: os dois, sem saber, estavam sendo gravados e a gente aproveitou alguns takes no filme porque a química foi criada entre eles. Não só isso como também entre o Connor e a Kelly, que fez a Julia – eles são irmãos no filme.
Claudia: Eles têm uma história, cresceram juntos. Essas pessoas se conhecem da vida: tem que parecer isso.
Camila: Exatamente. E tem um momento, na última cena, que foi criado pelos dois. É o momento em que o Ben olha nos olhos da mãe pela primeira vez e, quando ela abraça o filho, ela olha para o irmão. Eles têm uma troca e aquilo foi criado, na hora, pelos dois. Eu não fiz esse blocking (a movimentação, as ações que o diretor passa para os atores fazerem em cena), foi isso que nasceu. A gente fez a primeira vez e eles vieram falar comigo: “Aconteceu isso, o que você acha?”. Eu falei: “Maravilhoso, façam!”. Foi natural e essa naturalidade só veio por causa dos rehearsals (ensaios) que a gente fez.
Claudia: Quanto tempo você ficou ensaiando?
Camila: Um mês, dois meses. A gente tinha dois tipos de rehearsal: em casa e rehearsal na academia de jiu jitsu. Também tinha de leitura.
Claudia: O Hayden é menor de idade, ele esteve sempre acompanhado de algum responsável no set?
Camila: Estava sempre o pai ou a mãe. E tínhamos uma Set Teacher sempre que estávamos trabalhando com o Hayden, pois é uma das exigências do SAG.
Claudia: O filme ficou lindo, todos os seus esforços compensaram. Parabéns pelo belo trabalho!
Camila: Que bom que você gostou. Muito obrigada!
Pensa na pessoa que arrepiou muito lendo isto. obrigada por fazer isto, significa muito para nós.. quero muito assistir e compartilhar com os pais do meu projeto. e na página e em todos os lugares