Autoflagelo – Fuga pela Dor

Todas as histórias nesta matéria, da coluna “Vida Real”, não são ficção, apesar de parecerem saídas de um filme dramático. Camila Sá, nossa nova colaboradora, nos conta através destes personagens, o que leva adolescentes a se infligirem, através do cutting e outras práticas, tanta dor. Torcemos para que vocês leiam e reflitam. Se estiverem passando por algo semelhante, peçam ajuda, não tenham vergonha. Se conhecerem alguém sofrendo deste mal, deem apoio.

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Fuga da dor pela dor

Por Camila Sá

“E um dia decidiu, quis terminar, só mais um gole e duas linhas horizontais. Sem a menor pressa, calculadamente. Depois do erro a redenção”. Aparentemente confusos, os versos da música Pulsos, da cantora Pitty, fazem parte da realidade de muitos jovens, adeptos da autoflagelação, o chamado cutting. Arrancar cabelos, puxar o lóbulo da orelha, unhar o corpo, engolir cacos de vidro, abrir ferimentos e, principalmente, se cortar fazem parte dessa série de crises de insuficiência. Pouco comentadas e longe das estatísticas oficiais, à primeira vista as crises podem até parecer inusitadas. Mas, por trás das lâminas ensanguentadas, quase sempre existem histórias de insatisfação e depressão.

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As vítimas mais comuns são os adolescentes. Dúvidas quanto ao futuro, ausência dos pais, pensamentos de incapacidade e perseguições na escola fazem com que muitos se afundem a cada dia mais nesse mal que pode, inclusive, acabar com vidas. Segundo o psiquiatra e professor da Universidade de Brasília (UnB) Raphael Boechat, as mulheres e os adolescentes são mais suscetíveis porque sentem necessidade de se expressar e cultuar o próprio corpo. “Ambos se preocupam muito com a imagem, por isso transtornos alimentares também são bastante frequentes”, justifica.

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A gaúcha Karen*, 15 anos, começou a se cortar aos 9, depois de apanhar e ser ridicularizada pelos colegas de escola. “Eu sentia vergonha de mim, porque acreditava no que diziam. Me sentia uma baleia de verdade. Eu queria uma válvula de escape, o cutting me trouxe isso. Eu me cortava todo dia e também vomitava”, lembra. A menina optou por não contar sobre as agressões a ninguém, até perceber a situação em que estava envolvida. “Resolvi dar um ponto final na situação”. Karen contou à mãe que era constantemente xingada e agredida, o que a levou até a escola para conversar com a diretora. “A direção chamou os pais, mas, mesmo assim, elas não pararam”, relembra.

No dia seguinte, ela apanhou mais do que todas as outras vezes. “Levei vários chutes, pontapés e tapas no rosto, além das ofensas. Todos estavam com raiva de mim porque tinham ficado de castigo”. Depois desse episódio, ela foi incentivada a praticar defesa pessoal e trocou de escola. Assim, as coisas melhoraram. “Fiz três amigas maravilhosas que me deram apoio e não sofri mais nenhum tipo de agressão. Contei tudo o que fazia para a minha mãe e ela me levou ao psicólogo”, conta. Há quase três anos Karen não se corta e não provoca mais vômitos.

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Reação e vício

A automutilação não é vista pela medicina como doença, e sim, como forma reativa de lidar com algum outro problema. “É preciso analisar cada caso isoladamente. É difícil descobrir a real causa que levou o paciente à autoflagelação”, afirma o psiquiatra. Fatos ocorridos na infância que ficaram gravados no subconsciente, a vaga lembrança de ver alguém fazendo e, na maioria das vezes, problemas familiares são apontados como justificativas. “Normalmente, depois de identificar a patologia, o paciente é encaminhado a um especialista psiquiátrico”. O tratamento é feito com remédios e psicoterapia. “Os resultados são satisfatórios e dificilmente o problema persiste”, explica Raphael.

“…Tenta achar que não é assim tão mal, exercita a paciência…”  – Pitty, refrão da música Pulsos

 Há quem diga que o cutting pode virar um vício, caso das adolescentes Janaina*, 14 anos, e Ysis*, 15, que usam lâminas e tesoura para aliviar os sentimentos. “Por mais que você esteja bem, uma hora vai voltar a fazer isso”, salienta Janaina. Ela começou aos 12 anos, depois de mudar para uma escola que, na sua visão, tinha alunos muito superiores. “É humilhante estar no meio de tantas pessoas ótimas e não ser tão inteligente”, conta. Nessa mesma época, com a separação dos pais, a mãe ficou mais distante do que já era normalmente, por causa do trabalho. “Quando eu percebi que não tinha ninguém perto de mim e nenhum apoio da minha família, eu comecei a me cortar”, desabafa.

Janaina não conseguia entender porque os pais estavam se separando. Lidava mal com o baixo rendimento escolar e com as constantes brigas em casa. “Eu e a minha mãe não estávamos nos entendendo bem. Uma vez quase me matei depois de uma discussão”. Apesar da fraqueza do momento, ela alega cortar os pulsos superficialmente, por medo de morrer. “Eu tenho muitos sonhos e neles encontro forças para continuar vivendo. Quero conhecer os meus ídolos e me tornar uma grande jornalista”, diz. Mas não nega que se sente aliviada a cada corte. “A dor que eu sinto nos pulsos é inferior a que eu sinto no coração. Às vezes, penso que estou bem, mas daí cai a última gota d’água no copo e eu não consigo suportar”.

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O controle da dor física alivia a emocional, conforme relata Raphael Boechat. A partir daí, a pessoa tem como amenizar ou aumentar a intensidade do que sente ao se cortar. “Isso substitui as lacunas emocionais trocando uma dor por outra”, explica. Quando esse sentimento de controle deixa de existir, as atitudes podem tomar outras proporções.

A sensação de “não funciona mais” já acontece há algum tempo com Ysis. “Qualquer coisa ruim que acontecia, eu já queria me cortar, mas aí não melhorava, eu pensava: não passou agora, mas eu vou fazer de novo e vai passar. Só que não passava”. Ysis, além do cutting, foi diagnosticada com bulimia nervosa, que começou de forma similar à que ocorreu com Karen. “O bullying me causou a baixa auto-estima e eu me sentia um lixo completo. Ficava tão angustiada que precisava tirar isso de mim, de alguma forma”. Apesar da grande pressão que vivia, a estudante passou a sentir que os cortes não eram o bastante para melhorar o estado de espírito.

Demi Lovato como inspiração

No final de 2010, a atriz e cantora Demi Lovato foi diagnosticada com transtornos alimentares, bipolar e automutilação. Reconhecida por participar dos filmes da Disney Camp Rock, Camp Rock 2: The Final Jam, Programa de Proteção para Princesas e o seriado Sunny entre Estrelas, a adolescente ficou internada três meses em uma clínica de reabilitação. Na primeira entrevista, meses depois de sair da terapia, a intérprete revelou as verdadeiras causas que a levaram ao fundo do poço.

Após agredir uma das dançarinas da equipe, por ter reportado à gravadora o mau comportamento de Demi Lovato, ela viu a carreira artística quase ruir. A atriz chegou a se envolver com drogas, tomava remédios e bebia escondido. A menina de, apenas 19 anos, revelou que disfarçava os cortes com maquiagem e pulseiras. Depois de passar pela reabilitação, Demi decidiu trazer a história a público, para inspirar pessoas com os mesmos problemas a se tratar.

Tratamento e ajuda

Pela proporção da história da cantora (veja quadro), vários outros fãs na mesma situação se encorajaram a pedir ajuda aos pais e buscar o tratamento. Muitos julgam esses transtornos como frescura, ignorando um problema sério. Os pais de Ysis, a princípio, também não acreditaram quando a filha contou. “Minha mãe tem mania de falar que eu faço isso para imitar outras pessoas, coisa bem idiota, sabe? Mas, de qualquer forma, ela quer me levar ao médico para que eu melhore”, declara. “Eu sei que eles querem me ajudar, mas é um vício. Uso qualquer coisa que seja cortante, normalmente faço nos pulsos e nas pernas”.

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A única coisa que a impede de se ferir, às vezes, é a música. Dessa forma, já conseguiu ficar três meses sem abrir um novo corte, mas as crises de vômito nunca deixaram de ser frequentes. “Tenho poucos amigos e eles dizem que sou magra, mas eu não acredito. Eu realmente tenho vontade de morrer, deixar de existir. Já tentei emagrecer várias vezes e não consigo. Eu só serei feliz de verdade quando emagrecer, o que ainda está muito longe de acontecer”, lamenta.

*Os verdadeiros nomes das adolescentes foram preservados.

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