Relato de uma viciada em seriado revoltada!
Poucos cancelamentos de série me deixaram tão possessa como o de “Alaska Daily”. Não que eu fosse obcecada pelo seriado, como fui por “The Royals”, também cancelado prematuramente, mas pelo simples fato de “Alaska Daily” ter sido a série mais relevante e significativa produzida nos EUA, em um canal aberto (ABC/Disney, a maior emissora/ conglomerado midiático do país), na última década.
Primeiro porque mostra que no Alasca, o maior estado dos EUA, não tem apenas geleiras e beleza natural, como vendem as empresas de cruzeiros lotados por estadunidenses do resto do país e gente do mundo afora, que, muitas vezes, nem saem dos navios quando vão visitar a região.
O Alasca é habitado pelos nativos que estão nesse país muito antes dos brancos. Falam seu idioma, além do inglês, diferente do estadunidense comum que, muitas vezes, só fala ou mal fala sua língua mãe. É um povo rico em cultura em todos os aspectos, música, artesanato, culinária, rituais. São os verdadeiros donos da terra e os mais esquecidos, os mais prejudicados pelo capitalismo selvagem, pela violência e pelo poder público.
A série apresenta o que as estatísticas terríveis em relação à violência contra a mulher nativa mostram. De acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, o assassinato é a principal causa de morte de mulheres nativas.
Já o Instituto Nacional de Justiça (NIJ) constatou que mais de quatro, em cada cinco mulheres indígenas e mulheres nativas do Alasca (84,3%), sofreram violência durante a vida.
Em Alaska Daily, Eileen (Hilary Swank) é uma jornalista de Nova York que se muda para o Alasca para começar do zero e buscar redenção, tanto pessoal quanto profissional, ingressando no jornal metropolitano diário, The Alaskan Daily. Na cidade de Anchorage, ela trabalha com outra colega do jornal, Roz Friendly (Grace Dove), investigando a crise de mulheres indígenas desaparecidas e assassinadas no estado do Alasca.
Na primeira temporada da série (que infelizmente será a única depois da ABC anunciar o cancelamento da série, essa semana), acompanhamos as duas jornalistas na investigação incansável para desvendar o assassinato de Glória, uma jovem indígena, nativa do Alasca. Vemos a negligência da polícia e das autoridades, incluindo o governo local, em relação à comunidade indígena, a ponto de condenarem e prenderem um homem, também nativo, obrigando o rapaz a confessar um crime que não cometeu (outro fato muito comum nos EUA, condenação de pretos, latinos, nativos, homens e mulheres inocentes).
A série também explora outros assuntos relevantes que refletem a realidade do Alasca, como exploração ilegal de recursos naturais, causando danos permanentes ao ambiente e agravando problemas como o aquecimento global, além de ressaltar a importância dos pequenos jornais locais, que têm como objetivo principal trabalhar para a comunidade, focando em divulgar suas necessidades e, assim, buscando contribuir para a resolução dos problemas que a afligem.
Como, por exemplo, investigar de fato os crimes contra as mulheres indígenas. Pois, segundo o National Crime Information Center, em 2016, houve 5.712 boletins de ocorrência relatando o desaparecimento de mulheres indígenas e mulheres e meninas nativas do Alasca – embora o banco de dados federal de pessoas desaparecidas do Departamento de Justiça dos EUA, NamUs, tenha registrado apenas 116 casos. O que aconteceu com os outros 5.596 casos? Foram arquivados, sem nem ao mesmo ninguém tentar correr atrás da solução?
Pois é, Daily Alaska colocou tudo isso para o grande público ver. Chamou a atenção para a realidade dos fatos, sem perder o charme de um seriado, ou seja, tem romance, tem amizade verdadeira, tem tensão, tem crise de identidade, tem conversa sobre saúde mental, tem ótimos atores e lindas paisagens, tem até boa trilha sonora, ou seja, tem um pouco de tudo e ainda assim não foi suficiente para sustentar um índice de audiência que atenda as necessidades capitalistas dos anunciantes.
Me corta o coração saber que quando uma série que aborda tópicos relacionados à violência sofrida pelas mulheres indígenas é produzida, ela não fica no ar o tempo suficiente para denunciar mais e mais crimes. O público gosta tanto de acompanhar séries, realities e documentários criminais que são produzidas a toque de caixa, as pessoas amam ouvir podcasts sobre o assunto, mas na hora de encarar a realidade focada na comunidade indígena, não dá a atenção que merece.
Além disso, as emissoras, a mídia, os anunciantes e os poderosos, também não têm lá muito interesse em chamar a atenção para os nativos, especialmente as mulheres, pois no final das contas, muitos vão ter que assumir a responsabilidade que têm ao negligenciar a morte, o desaparecimento, a violência sofrida pelas indígenas e nativas, não só no Alasca, como em vários outros estados nos EUA.
O assunto é sério demais pra ser levado a sério. Uma pena que a sociedade e, pior, as autoridades, ainda negligenciem a violência contra as minorias. Ao mesmo tempo, tem várias ONGs que trabalham incansavelmente para ajudar as vítimas, seus familiares e amigos a solucionar casos de desaparecimento, assassinato e a violência contra mulheres indígenas e nativas e pra elas vai nossa atenção, nosso reconhecimento e aplausos. Clique no link para conhecer quem está fazendo o que o que os poderosos que regem esse país não fazem:
Sigo triste com o cancelamento de “Alaska Daily”, mas na torcida para que, em breve, outro seriado focado nesse assunto seja produzido por uma grande emissora ou serviço de streaming. Seria bom Hollywood usar seu poder para transformar uma realidade tão cruel, ao invés de vender o glamour da vida superficial de quem só passa de navio pelo Alasca.
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vvvvv | Tive o prazer de ficar frente a frente com Grace Dove, a intérprete de Roz Friendly, que fez I’m, trabalho excepcional, em “Alaska Daily”, no Santa Barbara Internacional Festival, em fevereiro. A atriz foi prestigiar o evento em homenagem à Angela Bassett. Infelizmente, ela não deu entrevistas, mas pude dizer quanto eu a admirava e gostava da série.
Feliz de ter registrado esse momento! |
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